Puta reportagem!
Atrizes pornô também sonham
Pedro Doria NO MINIMO.COM
Elas são diferentes uma da outra. Lana é ruiva, tem 29 anos e carrega com ela um pragmatismo quase seco de quem trabalha há muito, já viveu demais e perdeu um bocado no meio do caminho. Juliana é morena, tem 21 anos e um certo fascínio pela vida. É – assim a descreve um de seus chefes – espontânea. São também parecidas, Lana e Juliana, no sentido de que hoje preferem que o ocorrido num dia após o outro defina seus futuros. Trabalham juntas: apresentam nas madrugadas de sexta, pela Rede TV, o programa “Buttman TV”. São contratadas da Buttman. Lana Starck e Juliana Pires são atrizes de filmes pornográficos.
Lana é de Brusque, uma cidadezinha no interior de Santa Catarina colonizada por alemães, poloneses e italianos, não distante de Blumenau e que, quando alguém lembra – e isso é raro –, o faz por conta da indústria têxtil. Interior mesmo, roça. Adolescente, foi babá em Blumenau, aos 18 casou com o rapaz que namorava desde os 16. Casou “praticamente” virgem – a data na igreja já estava marcada quando lhe veio a primeira vez. E engravidou – gravidez que perdeu no terceiro mês. Aí decidiu que um filho só viria muito planejado.
Juliana foi casada também. Um dia, tinha 17 anos, dormiu fora de casa, a mãe se desesperou porque não voltava, foi fuçar-lhe a bolsa para pinçar os documentos e tomar o rumo da delegacia quando encontrou a cartela de anticoncepcionais. Achou que assim o moço tinha de casar – e casaram. Compraram carro, mobiliaram apartamento, durou dois anos e pouquinho. Quando estavam planejando financiar a casa na periferia de São Paulo, onde sempre morou, Juliana virou-se para o marido e disse que achava melhor não. Ele entendeu – são amigos. Ela então perguntou se ele achava que, sozinha, ela conseguiria alguma coisa. Ele respondeu que sim.
Para Lana não foi assim tão fácil. Foi, e diz isso com veemência, uma mulher exemplar, fidelíssima, daquelas certinhas de interior. Mas não é o que o marido ouviu – disseram-lhe que Lana punha sonífero no chá da sogra e tomava o rumo da noitada, que freqüentava festas ousadas. Quando tudo desandou, estavam juntos fazia sete anos. Não se vêem desde que assinaram o divórcio. A última notícia que teve dele é que foi transferido para Manaus – é fiscal da Receita. Já sabe de sua carreira e não achou mau, mas acha que aquela é bem diferente da Adriana que conheceu. Lana chamou-se Adriana quase toda a vida.
Coisa de amigo do amigo
Juliana não revela o nome verdadeiro – ou até revela, num impulso, para logo então deixar para lá e pedir que não se publique. Um pequeno pudor, sua reserva, embora os pais, os amigos, todos saibam o que faz. Só quem não sabe são seus pais biológicos. Ela os conheceu quando tinha 12 anos e decidiu viver com eles. Não gostou e voltou para casa. “Eram meus pais de sangue, mas não parecia família. Minha família era a outra”, explica. Perdeu contato, nem faz muita questão. Mas a mãe adotiva, que é mãe de verdade, sofre com a escolha da filha. Não que desaprove, não é exatamente isso. É que os vizinhos falam, a chamam de puta e isso ela não é. Faz sexo perante as câmeras com gente que também recebe por isso, mas não atende clientes. E até se revolta. Na vizinhança tem menina que engravidou pela primeira vez aos 13 anos e com 18 já era mãe de dois, tem gente que se droga e que vende droga, pai alcoólatra que bate. Tem de tudo, um típico bairro pobre de cidade grande brasileira – só que é dela que falam.
Nenhuma das duas vive na periferia. Dividem, cada qual em seu canto, apartamentos nos bairros da classe média paulistana. Juliana, com um amigo jornalista e uma amiga que está na faculdade. Lana, com outra atriz de filmes eróticos e uma amiga dos tempos de Porto Alegre, cabeleireira. “Tenho minha esteticista particular”, diz, lampeira. Ela entende disso. Foi em Porto Alegre que chegou a cursar o primeiro semestre de Enfermagem, tem o nível Superior incompleto, mas se encontrou mesmo cortando cabelos. Chegou a abrir lá um salão – “uma estética”, diz. Seu português é tocado de leve pelas vogais abertas e arrastadas do sotaque gaúcho que mistura com gírias paulistanas.
O salão não deu certo. “Primeiro negócio, pouca experiência.” Vivia com a mãe e uma meia-irmã – seus pais são divorciados. Acumulou dívidas. Numa festa, então, alguém lhe sugeriu que fizesse filmes, que em São Paulo havia oportunidades. De noite, comentou com a mãe. Como era coisa de amigo do amigo de quem falou, a mãe teve medo – não do filme, mas de que fosse algo traiçoeiro, um rapto, tráfico de mulheres para a Europa. Lana foi, era filme mesmo.
Nem filme, apenas cena, que no Brasil as moças são contratadas por cena. Em média, 1.500 reais a cena que demora de 40 minutos a hora e meia para ser gravada. Fórmula simples: os atores aparecem vestidos; então se despem, ele faz sexo oral nela, ela nele; então ele a toma pela frente, depois por trás. Termina com o orgasmo masculino. Juntem-se umas seis destas, está pronto um filme.
Lana fez as contas e decidiu que umas cenas resolviam-lhe a vida. Quitou as dívidas – começou o tique-taque do relógio. Um filme demora uns meses para ser editado e, durante estes meses, Lana não comentou com ninguém. À noite, caía em angústia. O que diriam seus clientes quando soubessem? Seus conhecidos – tanta gente. Fechou o salão, comprou para a mãe uma casa na terra familiar e segura de Santa Catarina. Tinha 27 anos, sobravam-lhe no bolso 300 reais e uma passagem para São Paulo. Foi.
Lições com o mestre
Juliana trabalhava em shopping de classe média. Numa loja só, ficou cinco anos até virar sub-gerente. Antes, trabalhou em padaria, numas promoções de marketing direto. Da tal loja saiu demitida quando decidiu ir ao cinema na hora do almoço. O dono queria justa causa – e ela adora cinema. Gosta de sonhar embalada pelas histórias da tela. Fez um acordo e conseguiu parte da indenização. Uma cliente, atriz como ela seria, foi quem fez o convite. A princípio, achou melhor não. Quando o dinheiro apertou, ligou de volta. Estava no Brasil um tal de Joey Silveira, ator norte-americano, que procurava moças novas.
Foi tímida. “Sempre fui muito certinha, imagina ter que tirar minha roupa para ver se ele aceitava ou não.” Achou tudo muito complicado, posições que nunca imaginara – gravou das 18h até depois da meia-noite de tanto que tinha que parar porque, se ele gostava da pose, não gostava da expressão facial, tantos os detalhes. Pacientemente, o mestre ensinou e Juliana Pires foi parar no mercado dos Estados Unidos. Isso foi ano passado. No finalzinho de 2003.
A mesmo época de Lana Starck. Quando chegou a São Paulo disposta a seguir a carreira que tinha começado, em outubro de 2003, cruzou caminhos com o ator Alexandre Frota, que seguia o mesmo rumo. A primeira cena de Frota foi com ela – a última cena dela antes de ser contratada pela Buttman. Novamente o relógio começou seu giro. Hora de contar ao pai antes que o filme pornô mais badalado lançado no país chegasse às páginas de todas as revistas. Disse tudo no Natal. Diz que gaguejou – ele perguntou se ela estava feliz.
“Eu gosto muito da coisa forte, muito gemido, muito grito, muitas dessas palavras que a gente usa”, explica Lana. Não está nisso porque gosta de platéia – não gosta, quanto menos gente assistindo às filmagens, melhor. Também não se interessa muito pelo início de cada cena – os beijos e os abraços e carinhos e línguas. Estimula-se antes: aprendeu o que é orgasmo à frente das câmaras e está tudo em sua cabeça. Não importa com quem contracene.
Juliana gosta de sexo oral – o que não gosta é do gosto de esperma e demorou um bocado para descobrir que precisar, não precisa, que pode lhe cair no rosto, nos seios, que é só pedir e o diretor não se incomoda. Às vezes, se apaixona. Melhor: diz que se encantou duas vezes por dois atores e que foi o suficiente para aprender que com companheiros de set o melhor é não ter nada. Tem um namoradinho, amigo de há muito, que é para quem liga quando está triste. Descreve como uma amizade colorida. Família, filhos, quer tudo, mas é plano distante, para um dia, quem sabe.
Direito de sonhar
Lana não fala de amor. Se sente que se apaixona, não atende telefone, não responde recado, corta contato. Caso necessário, é rude. Seus objetivos são claros: fazer dinheiro. A pancada do primeiro casamento ensinou-lhe uma certa frieza. Quer trabalhar enquanto der, acha que, aos 29, não tem muito mais tempo na profissão. Aí talvez volte para a boa Santa Catarina e abra um novo salão – uma estética. Quer coisa grande. É possível que seja então o momento de ter um filho – aquele que decidiu, faz mais de década, que planejaria.
Acontece que o programa de TV que começou a fazer com Juliana pode mudar isso. Nele, faz reportagens, entrevistas – ouve nas ruas e pela Internet muito elogio. É trabalho diferente, sensual, por certo, mas nada explícito. E assim como nunca lhe tinha passado pela cabeça uma carreira como atriz pornô, também jamais cogitou fazer televisão. Por enquanto, vai gostando e até pensa, quem sabe, que uma faculdade de jornalismo possa estar ali nos próximos anos. Por via das dúvidas, já começa a estudar.
Não é que Juliana não goste também do “Buttman TV” – ela gosta. Mas o que a faz sorrir mesmo e sonhar é outra seara: moda. Tem olho afiado, faz graça de suas colegas de estúdio com saltos agulha como se aquilo fosse sensual – talvez tenha sido um dia. Juliana calça All Star, preferencialmente colorido, veste jeans, camiseta. E como sempre se vestiu assim, nos curtos segundos de vestida perante as câmeras, põe o mesmo. Quer ser estilista e, aos 21, tem muito tempo para isso. Se puder escolher, prefere trabalhar em duas grifes paulistas: Colcci e Ópera Rock, ambas dirigidas a um mesmo público, shorts curtos, camisas justas, coisa moderna e arrumadinha, roupa de menina adolescente da classe média.
Juliana e Lana são diferentes, mas parecidas. Criaram-se ambas naquela tênue linha brasileira entre a classe média e a pobreza, casaram-se cedo mais ou menos pelo mesmo motivo, o lamento da virgindade perdida, e separaram-se porque não tinham de ter casado. O mercado da pornografia está em franca expansão, aqui e lá fora, e aqui elas estão entre os expoentes: são, juntas, o rosto oficial de uma das maiores produtoras e as primeiras a aparecerem na TV aberta, ainda que naquele horário entre os programas de leilão de jóias e os discursos dos pastores. Agradecem a quem as convenceu a fazer sexo no vídeo: foi ascensão social. Quer dizer casa para a mãe, sair da periferia, pagar dívidas, ter o direito de sonhar, ainda que caladas, com um futuro melhor.